domingo, 16 de dezembro de 2007

Uma possível abordagem para o tema "mudanças climáticas" em sala de aula

Hoje, o conhecimento que temos, enquanto cidadãos, sobre o tema “mudanças climáticas” é extremamente influenciado e constituído pela mídia. Atualmente, esse tema tem sido presença constante em jornais, revistas, no cinema e, principalmente, na TV, embora ele já apareça na mídia pelo menos desde a década de 40 do século XX. Esse fato não pode ser ignorado quando pretendemos pensar abordagens desse tema na escola. Essa grande circulação de discursos sobre o tema, certamente traz conhecimentos, informações relevantes, mas antes de tudo, cria um contexto de sentidos que constituem as memórias discursivas dos estudantes, ou seja, o que eles inconscientemente mobilizarão para significar o que se trabalha na escola sobre o tema. Mas também, associada às formas como tradicionalmente a questão climática tem sido trabalhada na escola, esse contexto atual tem contribuído para construir uma série de sentidos problemáticos que poderiam ser retrabalhados na escola, seja por conta de uma melhor compreensão do ambiente e do planeta em que vivemos, seja por conta de valores e imaginários associados ao conhecimento científico, aos modos como ele é produzido, como ele é formulado em diferentes tipos de textos e como ele circula numa sociedade como a nossa. Entre esses sentidos que consideramos problemáticos estão:

  • pensar que o clima da Terra teria sido sempre o mesmo, e só agora estaria se modificando, ou seja, acreditar que o clima da Terra não possui variabilidade natural em diferentes escalas de tempo;
  • acreditar que não há incertezas, não há controvérsias, não há problemas científicos ainda não resolvidos e não ter noção das limitações dos conhecimentos científicos sobre o tema (todo conhecimento científico tem suas limitações, seus contornos de validade);
  • confundir efeito estufa, associado principalmente à radiação infravermelha, com o problema da camada de ozônio, associado principalmente com as radiações na faixa do ultravioleta;
  • confundir efeito estufa com inversão térmica ou com poluição atmosférica pelo CO;
  • acreditar que o efeito estufa é causado por um acúmulo de CO2 que forma uma camada específica na atmosfera como se fosse literalmente um cobertor e que varia de espessura conforme a quantidade desse gás na atmosfera (observar as imagens amplamente divulgadas que tentam “explicar” o fenômeno);
  • acreditar que o efeito estufa é ruim, e que deveria ser eliminado;
  • ver o problema apenas do ponto de vista científico, conceitual, sem considerar os aspectos políticos, econômicos, sociais e históricos envolvidos;
  • considerar o efeito estufa como o único componente do sistema climático global ou sejam não trabalhar com uma concepção de sistema, de fluxos de energia e matéria, e pensar em termos de relação causa-efeito simples e de maneira isolada, sem considerar relações com outros sistemas terrestres e sem perceber as relações entre os inúmeros sub-sistemas, os processos de retroalimentação positiva e negativa;
  • atribuir soluções simplistas ao problema, como por exemplo, “plante uma árvore e contribua para diminuir o aquecimento global”, ou politicamente questionáveis, como por exemplo “ações individuais poderão resolver o problema” como se a sociedade fosse o resultado da soma de nossas ações individuais, carecendo de uma visão mais ampla e complexa do funcionamento social, o que se evidencia por ênfase em idéias como “faça a sua parte (não ande de carro) e o planeta estará salvo”, o que também contribui para uma visão simplista da dimensão político-econômica da sociedade em que vivemos, como se ela fosse o simples resultado da soma de ações individuais; ou uma visão maniqueísta: de um lado os “mocinhos” (geralmente associados a discursos ambientalistas) e de outro os “bandidos”, ao invés da uma visão mais complexa das relações de poder, econômicas e sociais envolvidas;
  • não considerar as diferentes implicações da questão entre os diferentes países (desenvolvidos e em desenvolvimento) e entre diferentes parcelas da população, ou seja, não considerar que os riscos ambientais são desigualmente distribuídos e que as possíveis conseqüências de uma possível mudança climática não atingirão igualmente todas as pessoas e que há populações, países, regiões, culturas e economias muito mais vulneráveis do que outras;
  • o problema dos discursos catastrofistas, que resvalam em discursos religiosos, animistas, antropomórficos e antropocêntricos em relação à natureza.

O tema “mudanças climáticas”, pela sua grande difusão pela mídia, pode ser utilizado como pretexto para o ensino de diversos conceitos e teorias em diferentes disciplinas num certo sentido de contextualização do ensino de ciências e matemáticas. Mas pode também representar uma grande oportunidade de desenvolver na escola um trabalho interdisciplinar, envolvendo professores de diferentes disciplinas não apenas da área de ciências da natureza e matemática como da área de humanas e linguagens. Ele pode ser apenas um pretexto para o ensino de conceitos, como pode ser oportunidade de trabalhar também a concepção de ciência dos alunos, a sua relação com a sociedade, com a política e com a economia, constituindo uma abordagem que temos chamado de CTSA (ciência, tecnologia, sociedade e ambiente) [1], [2], no âmbito do ensino de ciências.

O filme “O dia depois de amanhã” é um filme tipicamente comercial americano e, por essa razão tem uma linguagem bem conhecida pelos alunos e é facilmente encontrado nas locadoras. Destacamos, dos primeiros 40 minutos do filme, situações que podem subsidiar discussões relevantes para o ensino de ciências e matemática, problematizando o tema e motivando os alunos: como são feitas pesquisas sobre o passado climático da Terra a partir da análise de amostras de gelo da Antártica, a utilização de modelos matemáticos (os modelos climáticos globais) [3], [4], os diferentes especialistas que estudam diferentes aspectos relacionados ao clima global [5], alguns aspectos das relações entre políticos e cientistas e conceitos importantes relacionados à compreensão do sistema climático global como o funcionamento das correntes oceânicas e seu papel no clima terrestre, o conceito de mudanças climáticas abruptas, extremos climáticos, entre outros. Na verdade, como não se trata de um documentário, essas questões estão presentes mas necessitam serem explicitadas, apontadas e trabalhadas em aula, se essa for a opção do professor. Um filme, como um texto ou qualquer outro objeto simbólico, não carrega sentidos em si, mas depende de como é lido, interpretado, ou seja, da nossa memória discursiva. Assim, o filme pode motivar uma discussão em sala de aula como introdução ao assunto, pode ajudar a sondar e levantar idéias iniciais dos alunos, pode funcionar como motivação e pretexto para estudo mais aprofundado a partir da problematização da temática a ele associada. Como se trata de um tema de ampla circulação, os alunos provavelmente têm muito o que dizer e perguntar sobre ele, o que facilita aulas que privilegiam a participação dos alunos. Esse fato pode ser aproveitado para dar espaço à voz dos alunos em diferentes situações de ensino e trabalhar com seus dizeres, suas idéias [6], [7], colocá-las em confronto, questioná-las e propiciar subsídios, materiais e idéias, para que eles mesmos possam se questionar sobre suas certezas muito influenciadas pela mídia.

Justamente o fato de ser muito abordado pela mídia uma idéia bastante corrente é a de que não houve mudanças climáticas no passado e de que elas não são naturais na história da Terra [8]. Assim, abordar a variabilidade climática natural na história da Terra, torna-se um aspecto importante ser trabalhado pela escola. Nesse ponto, o professor de biologia tem um papel importante porque é o que está mais acostumado a pensar em grandes escalas de tempo, ou seja, no tempo geológico. Gráficos aqui têm um papel fundamental, e, portanto, os professores de matemática, principalmente trabalhando as diferentes escalas de tempo, e com a noção de erros, onde podem contar com o diálogo com os professores de física.

O clima terrestre já se alterou inúmeras vezes ao longo da história do nosso planeta (veja o gráfico que representa a variação da temperatura próximo à superfície da Terra apenas nos últimos 500 mil anos). Situar o homem nessa história é fundamental. Mas, também é fundamental situar a relação entre clima e a vida na Terra de maneira mais ampla. A Terra pode ser compreendida como um conjunto de esferas ou sistemas que interagem entre si: a atmosfera (onde ocorrem os fenômenos meteorológicos), a criosfera, a hidrosfera, a litosfera (o papel das placas tectônicas e transformações geológicas a elas associadas como vulcões, por exemplo) e a biosfera. A vida na Terra não apenas depende das condições climáticas como modifica essas condições. Há vários tipos de evidências empíricas que os cientistas utilizam para compreender o passado climático terrestre, como os próprios testemunhos geológicos, fósseis de organismos que sintetizam carbonatos como as foraminíferas, amostras de ar aprisionado em camadas de gelo da Antártica, anéis de árvores (dendrocronologia), fósseis de animais e plantas que indicam condições ambientais que possibilitavam sua sobrevivência no local.

Assim, o sistema climático pode ser compreendido como um sistema complexo, composto por vários componentes e sub-sistemas que interagem entre si. O efeito estufa [9] é um dos fenômenos que compõem esse sistema, ou seja, o conceito de mudanças climáticas é muito maior e mais amplo e não pode ser reduzido ao efeito estufa ou aquecimento global.

Para compreender o clima terrestre, utilizam-se atualmente modelos matemáticos computacionais. Trata-se de modelos matemáticos baseados no conceito de balanço energético e de circulação atmosférica global. Para tal, é importante compreender que componentes fazem parte e como cada componente interfere nesse balanço energético terrestre. O efeito estufa é um desses componentes. De fato, trata-se do componente cientificamente mais bem compreendido até o momento, mas não se trata do único componente.

O efeito estufa é um fenômeno natural que tem tido, ao longo da história da Terra um papel fundamental na manutenção e desenvolvimento da vida. A posição de Ab´Saber [10] é interessante a esse respeito. Alterações na composição da atmosfera terrestre podem alterar o efeito estufa dentro do balanço energético terrestre e contribuir para o aquecimento ou, indiretamente, para o resfriamento terrestre. Mas o resultado disso depende da interação complexa com outros fatores que também são alterados no sistema. Além disso, o balanço energético terrestre e, conseqüentemente o aumento ou a diminuição da temperatura média próxima à superfície terrestre, pode ser alterado por outros fatores, como variações na emissão de energia solar ou na distribuição dessa energia pela superfície terrestre, devido a diversas mudanças na órbita terrestre e no seu eixo de inclinação. A compreensão da interação entre radiação eletromagnética e matéria é fundamental aqui e, portanto, envolve conhecimentos de física e de química.

Se, do ponto de vista do funcionamento da natureza, a noção central nesse tema é a de balanço energético [11], do ponto de vista humano a questão central também é a energia: os modos como as sociedades “produzem”, distribuem e “consomem” energia. Nesse aspecto, a interação com professores de geografia e de história é fundamental. A questão da energia envolve questões políticas, geopolíticas, econômicas e sociais complexas [12]. Os debates sobre “mudanças climáticas” no plano científico [5] não podem ser dissociados das controvérsias no plano político-econômico-social [12]. Tanto a produção de conhecimentos científico-tecnológicos sobre esse tema é dependente da dinâmica dessas controvérsias no plano político-econômico-social, quanto essas últimas dependem dos conhecimentos científico-tecnológicos produzidos. Na área de ensino de ciências, uma abordagem que leva em consideração esses planos no trabalho com conceitos e teorias científicas, vem sendo chamada de CTSA, por tratar justamente das relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente. Numa abordagem CTSA de ensino de ciências e matemática, conhecimentos científicos e matemáticos são mobilizados em atividades e estratégias que trabalhem a questão da participação, dos posicionamentos e da tomada de decisão pelos cidadãos numa sociedade democrática. É isso que exemplificamos com a última atividade da aula.

Nesse sentido, o trabalho com os textos (verbais e audiovisuais) tem um papel diferenciado, porque o tema permite trabalhar com os alunos textos de diversas fontes, além dos próprios livros didáticos, como revistas semanais, revistas de divulgação científica, jornais, documentários, jornais televisivos. Assim, não só a variedade é importante para os alunos perceberem que há fontes e meios variados pelos quais circulam conhecimentos sociocientíficos, como o fato de que não há veículos neutros, nem os livros didáticos, principalmente em relação a um tema em que o político e o científico se encontram entrelaçados com mais evidência. Diferentes textos (verbais e não verbais) trabalham diferentes sentidos e posicionamentos sobre as controvérsias. Ajudar os alunos a identificar essas diferentes posições pode não apenas contribuir para a compreensão de conceitos científicos importantes, como contribuir para a construção de uma concepção de ciência como algo socialmente produzido, assim como para a formação de leitores em ciência numa sociedade como a nossa.

Finalmente, poderíamos pensar que apenas este tema é controverso. De fato, neste tema, as relações entre questões políticas, sociais, econômicas e científicas parecem ser mais evidentes. Mas essas relações fazem parte da produção da ciência em geral. Na verdade, embora sejam controvérsias de naturezas diferentes, todo tema científico é controverso. Controvérsias que, na maioria das vezes, se escondem, por trás dos enunciados categóricos e fechados dos livros didáticos e dos manuais de ensino superior, e da própria mídia.

Referências

[1] AULER, D. e DELIZOICOV. D. Alfabetização científico-tecnológica para quê? Ensaio. Vol. 3, n.2, 2001. http://www.fae.ufmg.br/ensaio/v3_n2/deciodemetrio.PDF

[2] Revista Ciência & Ensino. Número especial sobre “Educação e Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente”. (vários artigos). No prelo. Disponível em: http://www.ige.unicamp.br/ojs/index.php/cienciaeensino

[3] MOLION, L. C. B. Um século e meio de aquecimento global. Ciência Hoje. v. 18, n. 107, 1995.

[4] Incerteza deixa previsão do clima caótica. Folha de São Paulo, 06/11/2007. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=52016

[5] Revista Scientific American Brasil. Edição Especial. n. 12. A Terra na Estufa. (vários artigos).

[6] ALMEIDA, M. J. P. M.; SOUZA, S. C. e SILVA, H. C. Perguntas, respostas e comentários dos estudantes como estratégias na produção de sentidos em sala de aula. In: NARDI, R. e ALMEIRA, M. J. P. M. (orgs.). Analogias, leituras e modelos no ensino da ciência: a sala de aula em estudo, p. 61-75. São Paulo: Escrituras, 2006.

[7] SILVA, H. C. ; ALMEIDA, M. J. P. M. O deslocamento de aspectos do funcionamento do discurso pedagógico pela leitura de textos de divulgação científica em aulas de física. Revista Electrónica de Enseñanza de Las Ciencias, Barcelona, v. 4, n. 3, p. 1-25, 2005. Disponível em: http://www.saum.uvigo.es/reec/volumenes/volumen4/ART8_Vol4_N3.pdf

[8] WEINER, J. O enigma do clima. In:____. O planeta Terra. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 93-145.

[9] Tolentino, M. e Rocha-Filho, R. C. A química no efeito-estufa. Química Nova na Escola. N. 8, nov., 1998. Disponível em: http://www.foco.lcc.ufmg.br/ensino/qnesc/pdf/n08/quimsoc.pdf

[10] Geraque, E. Aquecimento é bom para a floresta, afirma Ab'Sáber. Folha de São Paulo, 15/03/2007. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=45316.

[11] ESCP – Earth Science Curriculum Project Investigando a Terra. São Paulo: McGraw Hill do Brasil, 1973, v.1.

[12] Revista Caros Amigos. Edição Especial: Aquecimento global: a busca de soluções. Ano XI. Número 34, setembro de 2007 (vários artigos).